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A escrita chinesa e seus "segredos"

Atualizado: 21 de nov. de 2024

 

  1. A escrita chinesa moderna e a sua história

现代

汉语

汉字

Xiàndài

hànyǔ

hànzì

Modernos

Língua [dos] Han

Caracteres dos “Han”

 

Na primeira linha da tabela acima, temos exemplos de caracteres chineses modernos, utilizados, atualmente, na República Popular da China (RPC), para a escrita. Estes caracteres foram estabelecidos a partir dos anos 1950, durante uma campanha educacional do governo chinês para redução do analfabetismo, que incluiu uma política denominada 汉字整理 (Hànzì Zhěnglǐ), que pode ser traduzida como “racionalização” ou “otimização” da “ortografia chinesa”. A reforma buscava simplificar e tornar mais regular a escrita. Para isso foi criado um comitê que editou um esquema de simplificação dos caracteres chineses em 1956 e um padrão nacional de romanização (Hànyǔ Pīnyīn) em 1958.


Tornando-se o padrão oficial da língua chinesa, desde então, na RPC e no seu sistema de educação, o Xiandai Hanyu Hanzi e o Hanyu Pinyin também acabaram se tornando os mais utilizados no exterior para o aprendizado de chinês por estrangeiros. São estes os padrões adotados, por exemplo, pelo Instituto Confúcio em todo o mundo e pelos exames oficiais de Chinês para estrangeiros, o HSK (Hanyu Shuiping Kaoshi), sob a responsabilidade do Ministério da Educação da RPC.


Anteriormente às reformas “ortográficas” dos anos 1950, o padrão de caracteres então utilizado derivava de um estilo caligráfico desenvolvido a partir do final da Dinastia Han e início da Dinastia Wei do Norte (por volta do século II E.C.), nomeado 楷书 (kaishu), que por sua vez, era influenciado pelo estilo caligráfico denominado 隸书 (lishu), desenvolvido no final da Dinastia Zhou, no chamado Período dos Estados Combatentes, e no início da Dinastia Qin, quando houve vários processos de uniformização administrativa, cultural e política de um novo império centralizado, sob o comando do Imperador Qin Huang Di.

Exemplo de caligrafia chinesa estilo Kaishu

A escrita chinesa, sobretudo, a partir da Dinastia Tang (618-906 E.C.), quando houve forte expansão comercial e geopolítica do Império chinês para além de suas fronteiras, foi adotada em vários estados vizinhos, como na Coréia e no Japão. No Japão por exemplo, os seus caracteres “tradicionais” são nomeados Kanji (漢字), isto é: o mesmo que Hanzi, literalmente, caracteres chineses (dos Han).


No século XVIII, durante o reinado do Imperador Qing Kangxi, foi escrito um dicionário que teve papel decisivo no estabelecimento dos caracteres chineses “tradicionais”, formados a partir de pouco mais de 200 radicais, denominados "bushou". Esse dicionário apresenta de modo bastante definitivo o padrão de escrita imediatamente anterior à política do Hanzi Zhengli, a partir do qual os novos caracteres doram simplificados.


  1. Os ideogramas e a caligrafia


Os caracteres dos Han, os Hanzi, são de natureza "logográfica"; isto quer dizer, dentre outras coisas, que, diferentemente da escrita alfabética, eles formam significado sem a necessidade de produzir sons específicos. Eles representam, em sua forma, mais diretamente objetos, conceitos ou ideias. Quando os Hanzi foram assimilados em diferentes línguas faladas na própria China e fora dela, portanto, um dos efeitos foi certa uniformidade linguística entre vários povos, etnias e impérios na escrita, ainda que a língua falada e, conseguentemente, os sons de cada caractere fossem bastante diferentes de lugar para lugar.


Outra característica interessante dos caracteres chineses é que eles podem incluir pictogramas, ou seja, um tipo mais específico de logograma cujo sentido se dá pela simulação esquemática ou simplificada da imagem daquilo que representa. Há ainda caracteres compostos (que formam a maior parte dos caracteres da língua), com componentes, por exemplo, pictográficos (sugestivos de imagens), ideográficos (sugestivos de ideias ou conceitos) e mesmo fonográficos (sugestivos de sons).


Essas características todas dos caracteres chineses, combinadas, dotam a língua de uma rica e complexa potencialidade poética, envolvendo enormes possibilidades de criação de jogos de conceitos, sons e imagens. Por isso mesmo, na alta cultura letrada dos chineses, a arte da caligrafia (de "desenhar" palavras) é altamente valorizada. A habilidade manual é fundamental para o letramento e, para além de um capricho embelezador, o traço caligráfico é entendido como uma forma artística de expressão das mais elevadas.


Exemplo de caligrafia Nüshu, exclusiva para mulheres.
Exemplo de caligrafia Nüshu, exclusiva para mulheres.

Sendo uma arte, a caligrafia chinesa, tal como a pintura e a poesia (às quais normalmente se vincula nas tradições eruditas), abrange um conjunto amplo de estilos, variando de época para época, de lugar para lugar e mesmo conforme o gênero da pessoa. Alguns estilos de caligrafia, como é o caso daquele denominado "Nüshu" (女書), são exclusivos de mulheres e, neste caso específico, por serem caracteres normalmente utilizados para se escrever entre varetas de leques, apresentam formas achatadas longitudinalmente, dando um aspecto todo particular ao padrão.


  1. Escritas "mágicas"


Além da dimensão estética e de comunicação humana, a escrita chinesa também está ligada às religiões e aos sistemas de "magia" da antiga China, cujas tradições, muitas delas estão vivas até hoje e costumam receber denominações genéricas (não raro pejorativas) de "religiões populares" ou de "Taoísmo religioso". Em tais religiões, é bastante comum o uso de amuletos diversos com a finalidade de proteção, de atração de boa sorte, de conjuração de determinadas deidades ou entidades ou de "exorcismos". Boa parte desses amuletos apresentam características caligráficas.


Exemplo de Fulu, a escrita "mágica" dos talismans.

A algumas palavras ordinárias da língua, quando escritas, são atribuídas qualidades de bom (ou mal) agouro, como, por exemplo, 壽 (shòu), "longevidade", ou 福 (fú), "bençãos" ou "boa sorte". Também bastante conhecida é 囍 (), "dupla felicidade", utilizada em decorações e em presentes de casamento. Entretanto, as escritas "mágicas" dos amuletos vão muito além da caligrafia ordinária. São "desenhos" ou "imagens", denominados Fulu (符籙) muito mais complexos do que os logogramas usuais da língua, com padrões muito mais irregulares. Mais parecem "desenhos abstratos" do que "palavras".


Além da escrita "mágica" obedecer padrões formais totalmente distintos da caligrafia convencional, como seria de se esperar, dado o seu contexto religioso de uso, ela envolve dimensões materiais e performáticas próprias, que fazem sentido no interior de rituais específicos, conduzido por pessoas devidamente preparadas (como sacerdotes, por exemplo) em espaços e tempos bem definidos. Em tais contextos, materiais relacionados aos pigmentos das tinturas e aos suportes, por exemplo, são tão relevantes para a eficácia simbólica dos amuletos quanto à forma da escrita em si.


  1. Os desafios de romanização dos caracteres chineses


Quando os europeus tomaram contato com o chinês, um desafio que tiveram foi o de transpor os logogramas chineses para a escrita “ocidental”, baseada no alfabeto latino, cuja lógica de formação de palavras é fundamentalmente fonética. No português do Brasil, por exemplo, é tão forte a dimensão fonética da escrita que uma das formas mais recorrentes de nos referirmos ao ensino das primeiras letras e da alfabetização é por meio da onomatopeia “bê-a-bá”, isto é: “juntando-se ‘b’ com ‘a’, forma-se ‘ba’”... Ou seja, em nossas línguas de matriz europeia, formamos sílabas ao juntarmos consoantes e vogais e as juntamos para formar as palavras, com seus significados.


O primeiro modo de “romanizar” os caracteres chineses, isto é: colocá-los no padrão silábico e fonético a partir de caracteres latinos, foi de base intuitiva e prática. Comerciantes, missionários e militares, por exemplo, vindos de Portugal, da Espanha, da Holanda, da França, da Alemanha ou da Inglaterra, escutavam as palavras pronunciadas pelos chineses e, então, as escreviam tal como as ouviam, seguindo um padrão reconhecível em suas línguas natais. Dá para imaginar o caos!


Primeiro, como há vários dialetos na China e caracteres idênticos pronunciam-se de modo muito distinto de região para região, a depender de onde se dava o contato, a romanização poderia variar bastante. Segundo, porque as próprias línguas europeias variam bastante entre si na forma de representar determinados sons e o que pode parecer um som para o falante de uma delas pode parecer algo bem diferente para o falante de outra.


Um desses primeiros padrões “ocidentais” de romanização a se notabilizar foi aquele conhecido pela fusão dos sobrenomes de seus criadores: Wade-Gales (Thomas Francis Wade e Herbert Gales). Este sistema é concebido a partir da fonética do inglês. Seus criadores eram importantes sinólogos (estudiosos da cultura letrada chinesa) britânicos entre o final do século XIX e início do século XX.


Se algumas artes marciais chinesas são conhecidas hoje como "Tai Chi Chuan" ou "Kung Fu", isso se dá em virtude do padrão Wade-Gales de transliteração/romanização. Respeitando o padrão mais recente do Pinyin, tais artes marciais seriam grafadas, respectivamente, como Taijiquan e Gong Fu. O sistema Wade-Gales ainda é utilizado como padrão de romanização do Chinês em Taiwan, onde não se reconhece a autoridade do governo da República Popular da China. Em Taiwan, também não são utilizados os caracteres modernos da língua chinesa, pelos mesmos motivos.

Exemplo de material didático voltado ao HSK

No padrão do Hanyu Pinyin, notam-se “acentuações” nas vogais das palavras. Na verdade, diferentemente do português, esses “acentos” não se referem às tônicas ou à produção de efeitos de nasalização (como o til e o acento circunflexo), mas às “durações” das vogais, algo que não temos de modo semelhante na língua portuguesa (nem mesmo no acento grave ou “crase”, quando não dobramos, oralmente, a duração do artigo e da proposição “a”).


No latim clássico, as vogais também possuíam durações, podendo ser de dois tipos (breves ou curtas), mas o português, como a maioria das línguas neolatinas, não as preservou. No chinês (no assim chamado "Mandarim"), há quatro diferentes “durações” de vogais e, por isso, há quatro diferentes marcas gráficas que as assinalam.


Essas marcações, embora sejam fundamentais para o aprendizado da língua chinesa falada, têm pouca funcionalidade quando o que se deseja é apenas escrever uma palavra chinesa de modo aproximado em caracteres latinos para leitores “ocidentais” não familiarizados com o “Chinês Mandarim”. Por isso, muitas vezes, em contextos internacionais, se opta pela utilização da romanização em Pinyin sem a preservação das marcas tonais das vogais.


  1. A ordem dos textos


Exemplo de índice de livro chinês com linhas na vertical

Um leitor brasileiro, ao manusear pela primeira vez um livro ou um manuscrito chinês, terá outros desafios além da língua e dos caracteres em si. A não ser que seja um leitor de mangás ou de textos árabes... uma das estranhezas será a impressão de que o texto se encontra escrito de trás para frente e da direita para a esquerda. Além disso, as linhas, que acostumamos a conceber na horizontal, em Chinês, na maior parte dos casos, são dispostas na vertical.


Há situações, como em placas votivas ou em "cartazes", nas quais se pode encontrar tanto o padrão de linhas verticais quanto de linhas horizontais, frases escritas da direita para esquerda ou da esquerda para a direita... Nesses casos, é o contexto e a familiaridade com determinados padrões e expressões que vai permitir o leitor identificar a ordem correta.


Ademais, como já adiantamos, a escrita chinesa também pode estar envolvida em formas "criptográficas", "herméticas" ou "cifradas" de comunicação, seja pensando, por exemplo, em contextos de segredos familiares, de seitas religiosas esotéricas ou de confidências entre um determinado grupo de pessoas. Nesses casos, a ordem da escrita pode enolver caminhos e padrões muito específicos, cujo entendimento depende, muitas vezes, da orientação oral de um "mestre" e/ou de um conhecimento de códigos bem específicos, transmitidos no interior de linhagens fechadas.


  1. Carimbos e impressões


Dizem alguns manuais escolares há muito tempo no Brasil que a imprensa foi uma invenção europeia na época do Renascimento e das Reformas Protestantes, graças aos chamados "tipos móveis" de Johannes Gutenberg. Entretanto, os tipos móveis já eram utilizados na China desde a Dinastia Song, cerca de 500 anos antes de serem desenvolvidos na Europa. Bi Sheng teria inventado um sistema que consistia em esculpir caracteres em pequenos blocos individuais para depois os ordenar, formando placas como matrizes de impressão, utilizável para a cópia rápida de textos.

Se a invenção de Bi Sheng não teve o mesmo impacto na China do que a de Gutenberg na Europa, isso tem menos relação com a tecnologia em si do que com as características da língua chinesa em comparação com o Alemão e outras línguas europeias. Enquanto o sistema silábico não exige mais do que vinte e poucos caracteres para formar qualquer palavra, os logogramas chineses chegam aos milhares! Mesmo concidernado apenas os mais utilizados, seriam necessárias centenas de padrões de tipos móveis para abranger todas as possibilidades, tornando esta tecnologia muito menos prática do que quando aplicada às escritas de padrão silábico.


Mas as impressões são ainda mais antigas na China do que os tipos móveis. "Selos" ou "carimbos" são utilizados desde o início do Império com diversas finalidades, tais como "assinaturas" (de identificação pessoal), reconhecimento de autoridades (como a do próprio Imperador), de marcas de "ateliês" de artesãos e artistas e mesmo para a reprodução de talismãs mágicos taoístas. Em templos chineses (de todas as religiões) também é possível encontrar estelas que muitas vezes eram/são utilizadas por pelegrinos como matrizes de impressão de textos, diagramas e imagens importantes para estudo e/ou proteção.


  1. Considerações Finais


Um praticante de artes marciais chinesas não precisa, necessariamente, falar ou ler em chinês com desenvoltura para se desenvolver na arte. Entretanto, o estudo da cultura, cujos elementos estruturam os conceitos mais específicos e próprios dessas artes marciais, é fundamental para que se atinja um nível mais elevado tanto em termos “técnicos” quanto, e principalmente, em termos “éticos e estéticos”.


Sendo assim, é muito útil ao praticante saber ao menos reconhecer alguns dos caracteres mais usuais na cultura marcial e alguns dos padrões de romanização utilizados em referência a eles. Um método prático e sem “decoreba” para se familiarizar com isso é a adoção de palavras em chinês nos treinamentos e a leitura constante e atenta de bons textos sobre artes marciais. Assim, “naturalmente”, muitas palavras vão sendo aprendidas e seus conceitos vão sendo assimilados e apreciados.



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